sábado, 18 de outubro de 2008

Belas pernas

Belas pernas

Coincidência ou não, Mirela já atendia por esse apelido na adolescência.
Pernas de bailarina, grossinhas até, com batatas bem desenvolvidas e coxas suculentas.
Com tudo em cima, considerando sua idade atual (ok Mirela, você é mais nova que eu, está registrado), as pernas ainda chamam a atenção.
Uma noite dessas fomos ao nosso habitual passeio ao shopping Higienopolis. Gosto de ir nesses lugares sozinha, sem ninguém me apressando, ou acompanhada por ela porque são os momentos em que podemos conversar sossegadas, comer alguma coisa, entrar em todas as lojas de sapatos, comprar ou não comprar nada.
Isso já se tornou até folclore pois Pedro, seu chefe, sempre intrigado com o que fazemos e conversamos tanto, vez ou outra faz questão de ir almoçar com Mirela por lá, onde eu costumeiramente os encontro para o café, enquanto degustam suas calóricas sobremesas.
- Mas o que vocês fazem todas as vezes que vêm ao shopping?
- Nada de mais, apenas observamos as tendências.
Pedro continua na mesma, com aquela cara de ponto de interrogação inconformado com a simplicidade da resposta e certo de que fazemos algo ilícito.
Pois bem, naquela noite, tínhamos muitos assuntos a tratar ela e eu. Resolvemos comer uma pizza daquelas do tipo brotinho do restaurante Viena antes de sua aula de inglês, ali próximo. O horário era bom, a praça vazia com muitos lugares para sentar.
Famintas, fizemos nosso pedido e escolhemos nos acomodar na ponta de uma fileira de mesas que estava vazia.
Minha pizza saiu primeiro, fui buscar e sentei-me. Na seqüência ela foi buscar a outra.
Nesse exato momento em que estava sozinha, vejo um sujeito alto, de terno, segurando sua bandeja e vindo em minha direção como uma flecha, fitando fixamente com olhos de lince.
Sem pestanejar, pousou sua bandeja na mesa ao lado e empurrou as tralhas da Mirela que estavam em cima de mesa pegada à nossa, enquanto perguntava se poderia sentar-se ali.
Achei esquisito porque havia muitos outros lugares livres, mas não quis parecer grosseira, então fiz uma mesura com a mão, assentindo ao seu pedido.
Estava acompanhado por um amigo bastante distinto, igualmente engravatado e mais velho, o qual deu a volta e pediu permissão para sentar-se ao meu lado.
Observando essa movimentação lá do restaurante, Mirela chegou e sentou-se. O cara já lhe estendeu a mão, apresentou-se e todos nos apresentamos educadamente.
Ela e eu começamos a conversar entre nós e o tal cara fez menção em levantar-se dizendo que não queria atrapalhar a conversa.
- Imagine, não se incomode, o local é público e não estamos conversando nenhum segredo (mentira!), - eu disse, louca para que fossem sentar em outro lugar.
Nesse momento minha a amiga achou que eu falava em código, pensando que havia me interessado por ele, então, querendo me ajudar, começou a ser simpática e entabular uma conversa com o sujeito.
O que essa louca está fazendo, pensei.
A um certo momento da conversa o cara vira pra ela e diz em tom de confissão:
- Você quer saber mesmo a verdade, o porque vim sentar-me aqui?
- ????
- Foi por causa de suas pernas!
Quase tive um síncope, cheguei a engasgar com a pizza. Virei pra o lado e não consegui segurar o ataque de riso. Eu suava, ria nervosamente, queria dar o fora dali o mais rápido possível. Peguei o celular e simulei um telefonema para o vento, a fim de tentar me acalmar.
Enquanto isso, Mirela, a vítima da pior cantada que ouvi nos últimos tempos, não se fez de rogada e incorporou o papel de um par de pernas ambulantes sem corpo, sem braços e sem cérebro.
O senhor que o acompanhava estava mudo, evidenciando um constrangimento que já era habitual, pelo que percebemos.
Já sentindo-se intimo o chato contou toda sua vida pessoal. Casou, separou, casou de novo, separou e disse que a última ex-mulher havia conhecido em outro shopping. Cá entre nós, provavelmente utilizando a mesma técnica de aproximação: o fetiche das pernas.
Só falou vantagens, brincava com um charuto que iria fumar lá embaixo, sujeito metido, dizendo-se dono de incorporadora, mas cara de delegado de polícia de quinta. A um dado momento, sacou do bolso um distintivo dourado, não sei pra que.
Durante o discurso falou das pernas mais umas três vezes. Ridículo!
E ainda teve o desplante de perguntar se minha amiga era comprometida (no que ela mentiu, claro).
Enfim, acabado o jantar, nos despedimos.
O amigo do Don Juan, na verdade sócio conforme soubemos durante a conversa, cumprimentou Mirela, dizendo que ela era muito boa pessoa e extremamente simpática. Já devia estar acostumado a presenciar os foras que o fulaninho deve tomar todos os dias com essa conversinha mole.
Descemos as escadas rolantes, eles primeiro, nós na seqüência. Nos despedimos, ainda aturdidas, e lá foi Mirela para sua aula de inglês, desfilando suas belas pernas anonimamente pela multidão.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Carabinieri


Carabinieri

Em seu comentário a Le acabou de me lembrar de uma outra passagem interessante.
Vou contar só mais essa antes de dormir.
Após nos instalarmos na casa do padre, saímos para passear pela cidade, acompanhados por uma imigrante romena. Não me lembro o nome dela, ajudem.
Ela era simpática e muito prestativa, estava preocupada em nos ciceronear, mas a coitadinha ainda se perdia em Padova. Não falava muito bem o italiano, estava lá para estudar e trabalhar. Contudo, conseguiamos uma certa comunicação.
Nessa saída, pegamos o ônibus com ela e chegamos no centro. Detalhe: tínhamos acabado de chegar de viagem e estávamos praticamente sem dormir.
As sete mulheres, oito com a romena, andaram muito aquele dia. Chegamos em Prato della Valle e ficamos por lá pois havia uma feira. É uma espécie de praça muito, muito grande e circular e ficamos completamente desorientadas, sem saber por onde havíamos entrado e onde seria a saída mais próxima do ponto de ônibus.
Cansadas, muito cansadas e com fome, muita fome. Não almoçamos naquele dia conturbado.
De repente, uma delegacia! Caramba, os carabinieri serão nossa salvação, claro.
Não pensamos duas vezes para entrar.
Vale lembrar que as delegacias da Europa de um modo geral não se assemelham com nenhuma aqui de São Paulo. As ocorrências certamente são em menor número e por isso encontramos o local vazio, calmo, tranquilo.
Como disse a Le, nosso ingresso bombástico foi impactante para os carabinieri, ao verem tantas mulheres entrarem juntas e tagarelando na delegacia que estava às moscas.
- Mas o que foi que aconteceu, Madonna mia?!
O homem ficou visivelmente preocupado, mas quando dissemos que estávamos perdidas ele relaxou.
Ficamos lá um tempão e nenhum dos carabinieri conseguiu nos explicar como pegar o ônibus. Na verdade nem eles sabiam.
Resolvemos ir embora porque esses carabinieri eram uns incompetentes. Onde já se viu, se fosse em São Paulo qualquer policial sabe informar o itinerário dos ônibus.
Na Italia como só andam de Mercedes, é isso que dá.
Pegamos um ônibus (errado, claro), descemos, rodamos e enfim achamos o ponto onde deveríamos esperar.
Só sei que no ônibus certo o motorista disse que adorava as brasileiras e ainda tivemos que aguentar o cara querendo nos convencer a ir com ele pra balada depois do expediente.

Terroristas por acaso


Terroristas por acaso

E naquela mesma viagem de 2005 rumo ao vêneto, nos deparamos com outras situações inusitadas.
Aquela euforia de viajar em grupo como muitos há muito não faziam e outros nunca tinham pisado sequer num avião. Era muita novidade, muita informação junta, muitas dúvidas desde aquelas mais banais como o que levar para vestir, até probleminhas preocupantes com passaportes e outras documentações.
Felizmente tudo deu certo e embarcamos sem problemas.
O vôo foi noturno, mas quase ninguém dormia. Conversas, filmes e logo pudemos ver a claridade do sol pelas frestas das janelas fechadas.
O café-da-manhã sendo servido e na sequência o alvoroço para os banheiros.
Nayrob se levanta e sem a menor cerimônia dá uma cheirada em cada uma de suas axilas.
Antes de continuar, preciso abrir um parêntese para apresentar Nayrob, essa figura humana extraordinária, diria o Faustão. Conta o próprio que sua mãe, ainda grávida, abriu o atlas e deu de cara com o continente africano, mais especificamente com o Quênia, cuja capital é Nairobi. E esse acabou sendo o nome escolhido para o filho, com algumas adaptações ortográficas, presumo, considerando a numerologia, a conjunção dos astros e estrelas, o solstício de inverno no hemisfério sul e o movimento da aurora boreal no norte.
Voltando ao avião da TAP que se dirigia ao aeroporto internacional de Lisboa, enquanto Nayrob conferia a intensidade do seu feromônio axilar, infelizmente bem próximo de mim.
De repente ele sumiu, voltando depois de uns dez minutos, com os olhos esbugalhados.
- O que aconteceu?
- Esse filho-da-mãe de comissário sem educação arrombou a porta do banheiro enquanto eu estava lá dentro, - esbravejou, indignado.
Todos quiseram saber o motivo prontos para ir tomar satisfações, já que no jantar um dos comissários deu um ataque porque um de nossos amigos ficou confuso entre escolher “pollo”, “gallllinhash” ou “chiiiiiiiiiiickennnn” (enquanto o tal comissário saltitava e batia as asas descontroladamente na nossa frente). Ah, esses comissários portugueses!
Então Nayrob finalmente explicou o ocorrido.
Reconhecendo que estava com o banho mais que vencido, conseguiu com uma de nossas amigas um desodorante aerosol (que é item proibidíssimo nos vôos, diga-se de passagem). Foi até o banheiro, arrancou a camisa e SHHHHHHHHHHHH…. momento em que dispara um alarme. No mesmo instante, um comissário simplesmente arromba a porta e o pega no flagra, com o desodorante em punho, enquanto os curiosos se aglomeravam para espiar do lado de fora. Depois do susto e da bronca, Nayrob volta para seu lugar, irresignado.
E para nosso desespero, o desodorante sequer amenizou a situação.

Aterrissamos sem problemas, mas tínhamos que administrar um outro problema. Cerca de quarenta minutos para desembarcar, passar pela alfângeda e pegar a conexão para Veneza.
Quem tinha o passaporte da comunidade européia pegou a fila menor e logo estava do outro lado, aguardando os demais que ficaram na longa fila dos estrangeiros.
Gianni, nosso tutor os acompanhava. A um certo ponto, já aflitos pela demora, vimos pela vidraça uma movimentação estranha e um tumulto em volta do nosso grupo que passava as bolsas de mão pelo raio X.
Pegaram a bolsa de um, jogaram tudo no balcão. A bolsa de outro e mais outro… Pronto, alguém vai ferrar o grupo todo, pensamos.
E o relógio corria, nossa conexão já esperava. E aquela confusão que não se resolvia.
Finalmente, depois de minutos que pareceram horas, olhares assustados, o grupo aparece correndo na sala de embarque. Conseguimos embarcar.
A explicação foi a seguinte. Os portugueses viram pelo raio X uma faca (uma faca?!) na bolsa da Andrea e por via das dúvidas fizeram com que todos despejassem suas coisas para revista. Nisso rolou cueca de um, pijama de outra, meia, pasta de dente… e a faca que Andrea havia pego no avião como souvenir junto com o garfo e a colher.
Resolvido o mistério, os talheres recuperados pelos portugueses. E quase acabamos deportados antes mesmo de chegar ao destino.



Sem carona


Sem carona

Estávamos em Padova - 2005.
Éramos sete mulheres e oito homens, mais o nosso tutor Gianni.
Os homens ficaram hospedados na república da universidade – ESU Copernico, enquanto as mulheres foram alojadas fora da cidade, na casa de um padre que estava em peregrinação.
Nada que cerca de meia-hora de espera no ponto de ônibus, mais meia-hora de trajeto, mais quinze minutos andando ligeiro à pé não resolvessem. Isso depois de uma longa jornada de reuniões, palestras, almoços maravilhosos sempre regados à vinho, mais reuniões (momentos em que cochilávamos descaradamente), pequenas viagens, outras palestras, pizzas, mais vinho e passeios noturnos. Então chegávamos sempre meio mortas em casa.
Depois do banho, outra rodada de vinho. Risadas e todas aquelas besteiras que mulheres de pijamas reunidas podem dizer entre quatro paredes. E ainda bem que as paredes eram italianas e dificilmente compreenderiam as conversas absurdas pontuadas por intermináveis risadas que rolavam antes de desmaiarmos pelo cansaço e leve bebedeira.
Mas nem sempre estávamos juntas. Algumas vezes nos dividíamos porque tínhamos que optar entre conseguir pegar o último ônibus em torno das nove da noite, ou ficar passeando pela cidade com os demais amigos que estavam na boca dos acontecimentos.
Certo que Padova tem lá seus encantos, mas chega uma certa hora que fica tudo deserto. Aproveitávamos para andar pelas vielas escuras, tirar fotos noturnas, conversar. Dava um pouco de medo porque assim como as outras cidades da Italia, Padova não deve ser mais a mesma depois da invasão dos extra-comunitários. Resultados da globalização. Uma pena pois cada vez mais se perde a identidade de um povo, de uma nação. É quase como aqui em São Paulo. Quase como…
Uma noite dessas, Juliana, Leticia e eu resolvemos ficar na centro. Fazia tempo que não líamos nossos e-mails e o único local de acesso era a sala de informática do alojamento da universidade, onde tínhamos que aguardar uma interminável fila composta pelos estudantes nativos e outros estrangeiros como nós.
Optamos por ficar por lá naquela noite e assim perdemos o último ônibus. Não sei bem se tínhamos um plano para voltar para casa, mas enfim, estávamos confiantes que tudo se ajeitaria. Pra falar a verdade, ficamos rebeldes e resolvemos chutar o pau da barraca mesmo.
Horas antes, naquele final de jornada, nosso tutor Gianni havia parado um taxi, entrou e foi embora com mais uns quatro da equipe masculina. Nós, as damas, atônitas com tamanha falta de cavalheirismo, ouvimos apenas um “ciao” e ninguém entendeu mais nada. Ficamos largadas no meio da rua. Dessa forma, quatro mulheres resolveram voltar para casa de ônibus e nós, as rebeladas, fomos caminhando por mais de uma hora para encontrá-los já frescos do banho e descansados.
Nem me lembro se conseguimos uma vaga na sala de informática, mas a um certo momento bateu aquela fominha.
Tudo fechado, apenas as máquinas de bebida e sanduiches duvidosos funcionando. Ou então o bar-café da esquina. Fomos as três ao bar-café.
Abrimos a porta e nenhum cliente. Surgiu por trás do balcão a figura redonda do dono do bar, enxugando um copo.
Cumprimentamos e nos acomodamos em uma mesa, quando pudemos ver uma figura sinistra nos observando de um canto mal iluminado pelos letreiros de luz neon. Fingimos nos concentrar no cardápio e esquecemos o tal que nos olhava com ganas de lobo faminto.
O dono veio logo receber o pedido, simpático até.
Para simplificar pedimos três tosts e três cappuccinos. Tost é o nome italiano para um sanduiche de pão de fôrma com presunto e queijo, uma espécie de misto-quente mais mirrado que os nossos daqui, mas muito bom.
“Cappuccio uno, cappuccio due, cappuccio tre”, disse o gordinho ao nos servir, fazendo a mesma referência numérica para os tosts.
Sim, foi simpático. E também nos pareceu adequado perguntar-lhe sobre taxis para voltar para casa.
- Mas para onde vocês vão?
- Estamos fora da cidade, num bairro chamado San Bellino.
- Coindicidência, é onde eu moro.
Olhou para o relógio na parede e complementou:
- Eu fecho à meia-noite. Agora são onze, se quiserem esperar eu posso dar-lhes carona até lá.
Nos entreolhamos e achamos a idéia razoável. O cara parecia decente e estávamos em três.
- Vamos avisar nossos amigos que iremos com você.
- Ok, se quiserem aguardar saímos daqui uma hora. Mas se quiserem ir agora, o meu primo ali pode levá-las, - disse apontando para o tal sujeito esquisito que logo sorriu um sorriso extremamente suspeito e acenou para nós.
Só nos ocorreu repetir que iríamos conversar com nossos amigos (para não parecermos sozinhas e desamparadas) e que voltaríamos à meia-noite. Pagamos a conta e saímos correndo. Aqueles dois não eram primos nem lá e nem na China. O dono do bar era italiano, mas o tal primo tinha no mínimo a cara de leste europeu. Optaríamos por voltar com o italiano, claro.
A Ju foi tentar novamente a fila para o computador enquanto a Le e eu fomos informar ao Gianni sobre nossa já acertada carona com o dono do bar.
Batemos à porta do alojamento e fomos recebidas por ele, mal saído do chuveiro e semi- enrolado em algo que parecia uma toalha de rosto tamanho GG, com a qual se esforçava para esconder as partes pudicas do corpinho.
Pra quem não conhece o Gianni, ele lembra um pouco o Jô Soares, mais alto talvez. E mais gordo também.
Enfim, fomos chamadas de “suas loucas” e proibidas de voltar ao bar. Ele pediu um radio-taxi e pagou a corrida. Chegamos sãs e salvas na casa do padre, onde nossas amigas já dormiam sono solto.
Na manhã seguinte o comentário geral era que escapamos de ter nos tornado escravas brancas em algum lugar no Oriente Médio.E o dono do bar ainda deve ter ficado bem mal impressionado já que nem voltamos para agradecer.

Aconteceu na Bahia


Aconteceu na Bahia

Mesmo em tempos de ditadura imposta pelo regime militar, com um general à frente da presidência da república, ainda se podia rir neste país. Um tanto quanto às escondidas quando se falava em política, escancaradamente quando o motivo era banal ou se tratava da excentricidade de algum parente ou amigo.
Seu Antonio era soteropolitano da gema. Casado com a tranquila e ponderada dona Amarante, cuja mãe, vó Edith, era minha avó por estima. Avó de tantas outras crianças também, dentre elas Sergio, Mirela e Cíntia, filhos do casal Antonio-Amarante. A do meio, Mirela, é jornalista, mora em São Paulo, minha amiga-irmã.
Mas o caso ocorreu antes mesmo que eu tivesse nascido, ou melhor, acontecia exatamente quando eu estava para chegar ao mundo.
Lá pelos idos de 63/64, meus pais migraram de São Paulo para Salvador e se instalaram no andar térreo do pequeno edifício onde ainda moram vó Edith e a dedicada Zezé, que foi um pouco babá de todos nós. Daí, sobreveio a amizade com esta senhora e, por conseqüência, com sua filha e genro, que a visitavam diariamente. Logo, o casal teve um menino, Sergio e cerca de dois anos depois, em 67, eu já estava sendo gerada.
Um breve parágrafo para descrever, em singelas palavras, a pessoa que merece destaque nesta história. Não que as outras tenham menor importância, mas meu relato tem o intuito de registrar algumas das particularidades de um certo personagem que conseguiu colorir com graça o pacato quotidiano soteropolitano.
Seu Antonio, tinha uma personalidade peculiar. Pessoa agitada, elétrica, complexa, mas de tão excelente índole. Com seu modo um tanto confuso de agir, acabava por conquistar a simpatia de meio-mundo, e no caso não seria um exagero dizer de meia-Salvador. De outro lado, meu pai, um italiano irritadiço e sistemático por natureza, já havia incorporado alguma parcela do jeito baiano de ser. Nem se zangava mais quando o motorista estacionava o ônibus todas as manhãs para uma pelada na orla junto aos demais passageiros, antes de retomar a condução dos que iam para o trabalho. À noite porém, era meu pai quem ia à praia encontrar-se com os camaradas, todos devidamente paramentados com suas varas de pescar, linhas, molitenes, anzóis, iscas e sanduíches. Sob o capricho da lua e das marés, lá ficavam empoleirados nas pedras até altas horas, à espera dos cardumes ou de algum peixe desavisado. Seu Antonio não participava das pescarias, talvez porque não gostasse, quem sabe porque era uma prática um tanto quanto zen demais para ele, ou ainda por um eventual boicote dos amigos pescadores que lá iam meio na surdina, pois não haveriam de querer ver o jantar escapar-lhes, assustado com o típico alvoroço que ele provocava.
Em certa pescaria como tantas outras, num domingo, porém, minha mãe estava sozinha em casa quando começou a sentir as contrações. Naquele tempo não existia telefone celular, mas ainda que tivesse sido inventado, meu pai certamente não portaria um.
Ele havia saído de manhã cedinho e, visto que tardava, minha mãe resolveu recorrer à vizinha vó Edith para pedir a alguém que fosse procurá-lo nos pontos de pesca. Contudo, fortunadamente, encontrou também seu Antonio, dona Amarante e Serginho, que ali estavam em visita.
Vó Edith nem teve chance de argumentar. Se qualquer novidade servia de estopim para uma total efervescência do genro, imagine uma situação destas, um parto! Esquecendo a mulher e o filho como quem esquece um guarda-chuva no balcão da padaria, seu Antonio precipitou-se escadaria abaixo, praticamente carregando dona Yvonne, minha mãe, no colo. Instalou-a no banco do carro e dirigiu feito um cometa para o hospital, enquanto repetia sem parar que mantivesse a calma e controlasse a respiração, tudo o que se recomenda às parturientes, mas com seu peculiar exagero. A angústia de minha mãe certamente se devia ao fato de que o condutor, um tanto afoito em seu modo de guiar, é quem parecia estar prestes a dar à luz. “Que ao menos cheguemos ilesos ao hospital”, ela rezava em pensamento.
Naquele ínterim, meu pai já havia voltado para casa, carregando o samburá cheio de peixes. Vó Edith avisava que o genro havia levado minha mãe ao hospital, momento em que seu Antonio reentra esbaforido, dizendo que o doutor não estava de plantão naquela noite e não havia mais nenhum obstetra para fazer o parto. Agarrou meu pai pelo braço e foram à casa do médico. Ali chegando, a empregada logo avisou: “O dotô tá na missa”. Mais uma vez em disparada, chacoalhando o carro nos paralelepípedos pelas ladeiras do Pelourinho, chegaram à igreja. Um à direita e outro à esquerda, tentando localizar o médico sob os olhares de reprovação de dezenas de fiés. Até que seu Antonio grita e acena: “Achei o doutor, achei”.
Antes mesmo que meu pai conseguisse chegar até eles, seu Antonio já havia se instalado no banco de trás, num espaço aberto à custa de cotoveladas entre as carolas que propositalmente lhe dificultavam a passagem. Puxava o médico pela manga da camisa, insistindo para que os acompanhasse ao hospital imediatamente, justificando que a paciente se encontrava em trabalho de parto.
Ainda que o obstetra afirmasse haver tempo até o parto em si e que só sairia dali depois da bênção do padre, seu Antonio conduzia as negociações com irrascível determinação e não se deixava intimidar. Tanto é que a um certo ponto das investidas, visivelmente enervado, o médico questionou quem era o pai da criança, afinal. “O pai é o meu amigo aqui, seu Armando”, - o qual limitou-se a esboçar um sorriso circunstancialmente amarelo, achando que uma interveniência sua àquela altura, soaria um tanto quanto incabida já que o amigo tomara por completo as rédeas da situação.
Finalmente, após a tão esperada bênção, o médico foi conduzido ao hospital e todos puderam suspirar com alívio e a certeza de missão cumprida.
Mas não pensem que esta foi a última incursão de seu Antonio aos mistérios da reprodução humana. Logo na seqüência, vieram suas filhas Mirela e Cintia. E depois delas, a filha de Raimunda, que havia sido agregada à família como babá das crianças. Ele, sempre agitado e ansioso ao levar uma parturiente à tiracolo pelos corredores do hospital, mas já habituado a ser confundido com o pai e a receber um sem número de votos de felicidades e congratulações pelo bebê da vez.


Nota: Seu Antonio e Vó Edith já são falecidos e deixaram muitas saudades.

domingo, 12 de outubro de 2008

Se

Se

"se saprai conservare la testa, quando intorno a te tutti perderanno la loro e te ne faranno una colpa; se crederai in te stesso quando tutti dubiteranno, ma saprai capire il loro dubbio; se saprai aspettare senza stancarti nell'attesa,ed essere calunniato senza calunniare; o essere odiato senza dare tu sfogo all'odio, e non apparir troppo bello, né dire cose troppo sagge; se saprai sognare senza fare del sogno il tuo padrone; se saprai pensare senza fare del pensiero il tuo fine; se saprai incontrare il trionfo ed il disastro e trattare questi due impostori nello stesso modo; se saprai sopportare di sentire le tue parole giuste falsate da ribaldi per farne trappole per i creduli; o vedere le cose per cui hai dato la vita spezzate, e curvarti e ricostruirle con logori utensili; se saprai fare un mucchio di tutte le tue vincite e rischiarle in un giro di testa e croce; e perdere e ricominciare da capo senza fiatare sulle tue perdite; se saprai forzare il tuo cuore, i nervi e i tendini per assecondare il tuo volere, anche quando essi sono consumati; e così resistere, quando non c'è più niente in te, tranne che la volontà che dice loro: reggete; se saprai parlare alle folle e mantenerti virtuoso, passeggiare con i re e non perdere la semplicità; se né i nemici, né gli amici potranno offenderti, se tutti conteranno, ma nessuno troppo; se saprai riempire il minuto che non perdona, coprendo una distanza che valga i sessanta secondi; tuo sarà il mondo e tutto ciò che esso contiene, e, ciò che più conta, tu sarai un uomo, figlio mio."

R. Kipling.

O Meretrício

O meretrício

Gentil-homem
Estás à procura de que?
Dou-te afago, dou-te dotes
Mas vendo-te afeto
Já que ele, afeto, me custa tanto também

Dou-te o corpo, beijos, açoites
Como queira
Vendo-te a alma que se desfaz em dias e noites
O espírito inquieto que se move
E já não cabe em mim

Dou-te um filho,
Dou-te vozes e gemidos
E ainda sou capaz de vender-te um suspiro
Aquele que me sai ao peito
Quando bates a porta atrás de ti

Gentil-homem, quero dar-te meu suor
E em troca tomar o calor de teus braços
Mesmo que sejas tu a pagar por entregá-los a mim
Não vejo mal,
Não possuo mal
Sou blasfêmia, sou fêmea
E aceito meu destino, minhas formas
Sem álibis insinceros

Já não posso deixar-te ir
Sem que saibas o que te posso dar
Sem que tenhas o que te quero vender
Mais uma noite
Mais um dia
Algumas horas de prazer

Gentil-homem
Estarás diante de meus olhos
Mesmo que outro seja teu semblante
Outras sejam as mãos a estreitar-me os flancos
E outros sejam os lábios a percorrer-me a espinha
Outras anedotas,
Outras pagas idiotas
Outros sonhos que não quero crer


Anto 27-05-08

Esfinge

Esfinge


Qual Esfinge está solta ao mundo
A dizimar homens, mulheres e crianças
Do ser vivente não se compadece
Desgraçando igualmente animais e plantas

Impondo medo, revolta e pânico
Urge um herói de grande intelecto
Espera-se venha ele a deslindar
A resposta do tal enigma secreto

Quem primeiro usa quatro pernas
E na seqüencia se equilibra em duas
Tempo depois utiliza três membros
Para locomover-se através das ruas ?

E apresentou-se um Édipo, rei de coragem
Com maestria e metafórica sapiência
Pôs intrincado pensamento à margem
Se atendo ao singelo observar da ciência

A questão se responde pelo Homem
Que em rebento está a andar de gatinhas
Em duas pernas se equilibra quando jovem
E o idoso em três, com o bastão caminha

Vencida, a Esfinge reconheceu a grandeza
Daquele homem que honrava a realeza
Jogou-se o monstro no abismo da tebana cidade
Recobrando pois o povo a total tranquilidade.

E assim termina essa incrível lenda poética
De um Édipo que pecou com a mãe Jocasta
Matara o pai, sem saber que ele assim o era
Alcançando o reinado em razão dessa lástima

Fôra culpada a Esfinge ao infligir o dilema
Impondo ao herói essa grande tragédia
Reino e rainha, em troca da adivinha
A vitória fez de Édipo rei por estratégia.

Anto 04-05-06

Sangria

Sangria

Foi-se o viço da face mais rosada
Que já ia não se sabe por qual via
Rastro rubro tal e qual bela granada
A esvair-se na mais pura das sangrias

Lamacento é o verão após a chuva
Respingando todo o lodo da restinga
Rosto oculto, chama viva não confunda
Desfigurada a narração da ladainha

Agridoce é o sabor de todo o amor
A doçura do encanto em anomalia
Verso limpo não existe nessa dor
Oriunda da pureza da poesia.


Anto 25-04-06

A Estrela

A Estrela



Viva luminescência que traspassa o vácuo infinito
E nos chega o véu celeste, rasgando a negra noite
Os olhos que a tudo vêem dão dizer restrito, aflito
Divisam apenas a luz que se aquieta ao horizonte

De tão amarga, está a Estrela a indagar aos astros
Quantos anos-luz a separam do seu negro abismo
Sente-se perdida no oceano, como velas sem mastros
Estática, como as Plêiades desenhadas em grafismos

Retilíneo e silente é o facho ininterrupto emitido
A distância é mera lacuna de tempo no espaço
Estão os humanos a olvidar de fatos ocorridos
Como a Estrela, aguardando a quietude do regaço.

Anto 29-05-06

Começo

Domingo chuvoso, quieto, mais apagado que de costume. Entre goles de café, propício para alguma inspiração poética tenebrosa - coisa que não veio, ainda bem.
Sob influência de uma conversa num almoço de sábado, mais especificamente ontem, me perguntei porque não abraçar a idéia de escrever e deixar ao alcance de quem quer que seja um pouco de mim?
"Ilustre desconhecida", diria minha amiga Lilian em sua recente incursão ao universo político. Também sou aqui a ilustre desconhecida de alguns, embora tão conhecida de outros e às vezes irreconhecível de mim mesma.
Então quem sabe, esse negócio seja de alguma valia.
O título bem poderia ser "recomeço", já que a todo momento estamos recomeçando algo, uma dieta, um esporte, uma conversa, um trabalho, um relacionamento, um livro... Entretanto, eu diria que começar agora significa partir de um ponto X, sem precisar olhar para trás.
Isso acontece quando a sensação do tempo que passa rápido demais se instala. E, se me lembro das aulas de geometria, utilizaria fácil hoje em minha vida a tangente, que é a distância mais curta entre dois pontos. É o que pretendo, pelo menos. Com todas as lições que levo todos os dias.
Bom, recado de uma ilustre desconhecida aos ilustres desconhecidos: se quiserem perder seu precioso tempo por aqui, fiquem à vontade.
Recado aos ilustres conhecidos e amigos: não se surpreendam com nada, pois escrever a gente escreve às vezes com a cabeça e outras com o coração.