quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O presente perfeito

O presente perfeito

Até que sou uma pessoa bastante controlada, mas algumas vezes, movida por impulsos que se manifestam de uma forma estranha… bom, o fato é que enfiar o pé na jaca é comigo!

Talvez seja por isso minha pecha de pára-raio de maluco. Conselho para quem anda ao meu lado: benza-se. Mirela sabe bem disso, mas à parte o fato de ser soteropolitana e ter nascido no berço embalado pela brisa do barravento e sob a proteção dos orixás, ela já está mais que acostumada a presenciar cenas dantescas em minha companhia. Se tem um maluco/a na área, podes crer, ele/a virá a mim. Deve ser alguma praga, castigo, carma, vai saber…

Dizem que a gente se transforma no que foi acumulando ao longo da vida. Também acredito nisso, piamente.

Então voltemos ao início dos anos 80, nos “melhores anos do resto de nossas vidas”. Me permito dizer essa conhecida frase em nome de todos os amigos daquela época. Alguns poucos irão discordar (têm lá seus motivos, compreendo, assim como vocês compreenderão a seguir), mas os demais sei que gostarão de lembrar essas passagens.

Por exemplo, na fila do gargarejo com o Fabio dando uma de cover do Evandro Mesquita com “Você não soube me amar” tendo Aninha, Isabel, Bete e a mim como backing vocals (amor, pede uma porção de batatas-fritas?), enquanto fumava (sim, ele fumava na classe, e nós abanávamos) em plena aula do Checchetto, o qual por sua vez fumava também e não ouvia nem via nada. Ah, como fomos fumantes passivos, que horror!

Ou então aquela invenção de esquentar a bunda com isqueiros. Isso foi tão rotineiro que acabávamos sugestionados e de vez em quando alguém dava um pulo no meio da classe por puro reflexo, sem que ninguém estivesse queimando ninguém. Que irresponsáveis! Já pensou botar fogo de verdade num amigo sem querer?

Na época das juninas era aquele fedor dos peidos de velha. Que nojo!

Nas aulas vespertinas, Ferruccio demonstrando as reações químicas no “tubão” de ensaio. Adivinha quem sempre era escalada como assistente? Bom, numa dessas aulas ri tanto que fiz xixi nas calças. E Cristina ainda lembrou dele nos perguntando cinicamente sobre a prova (em todas as provas) : - Então meninas, foram beeeem? E a nota das duas era sempre igual uma da outra…. E igual também à nota da Denise, que nos passava a prova inteira. Obrigada Denise!

As corridas atrás do irmão Francisco… Aquele “Tsouro” do irmão Francisco! No primeiro dia de aula de algum dos anos soubemos que ele foi transferido para outro mosteiro, bem longe das perseguições das meninas.

Os papéis higiênicos molhados voando para o teto dos banheiros. Impressionante, mas aquilo era engraçado! Acho que aprendemos mais aí sobre física, cálculo de distância, pé-direito (e era bem alto), massa, força e gravidade que em qualquer aula teórica.

Concurso de gritos no corredor do vestiário feminino, em frente à sala do dom Bernardo. O coitado às vezes abria a porta com a cara de assustado e passava uns sermões. – Meninas, meninas, contenham-se!

Isso me lembra que uma vez invadimos o vestiário masculino e detonamos. Viramos do avesso e amarramos as roupas, escondemos carteiras, cuecas, sapatos, trocamos tudo de lugar. Os meninos demoraram horas para voltar para a sala de aula, porque não achavam suas coisas.

E chegou o dia do presente perfeito.

Uma menina que por razões óbvias chamarei de Angelica era nova no colégio. Era séria, ou melhor, mais amadurecida do que nós e não aceitava certas brincadeiras. Não demorou muito para que se transformasse em vítima do que hoje conhecemos como bullying, uma prática terrível entre crianças e adolescentes e que pode abalar tão fortemente uma pessoa ao ponto de provocar grandes tragédias. Eu mesma já fui muito vitimada e garanto que não é legal. Portanto, orientem seus filhos a não serem agentes, coniventes ou pacientes resignados com essa condição.

Então considerem o breve relato a seguir como estudo de caso.

Pois bem, Angelica aquele dia voltou do intervalo e encontrou sobre sua carteira uma caixinha embrulhada para presente. Era dia dos namorados ou coisa parecida e junto havia um bilhete todo meloso. Ela sentava-se exatamente na frente da mesa dos professores e nós, Cristina e eu, atrás dela.

Observávamos enquanto sacudia a caixinha discretamente, mas com uma carinha de satisfação e curiosidade. Os demais alunos chegavam e tomavam seus lugares. O professor Frederico, de física, também já se instalava e Angelica ainda titubeava se devia ou não abrir o presente.

Resolveu abrir. Mas a caixinha propositalmente não era uma caixa com tampa e sim uma daquelas caixas de comprimidos, daquelas longas e que se abre pelas extremidades. Um plano minuciosamente arquitetado. Então, Angelica viu-se obrigada a despejar o conteúdo da caixa na mão e esse conteúdo nada mais era do que uma barata. Uma barata gigante, caçada pelo nosso amigo Leonardo, mais conhecido como Japonês, no fértil bueiro de sua rua.

É claro que tratou-se de uma encomenda nossa, minha e de Cristina (culpa-culpa-culpa! Perdão Deus, perdão São Bento, perdão Angelica, mil sinceras desculpas!).

A classe aturdiu-se com os gritos da menina e a barata, apesar de morta voou pelos ares indo parar em cima do professor Frederico, que por sua vez também teve um piti, não sei se pela balbúrdia dos alunos que queriam saber o que estava acontecendo ou pelo seu visível horror ao inseto.

Dias depois, nova encomenda de baratas. Dessa vez o Japonês caprichou. Nem eram tão grandes, mas eram muitas, umas cinco ou seis.
Pegamos o estojo de uma outra menina e colamos as baratas em suas canetas e lapis. Claro que nós, Cris e eu ficamos coordenando a operação, executada pelo nosso amigo nipônico que não tinha nojo de enrolar os insetos com muito, muito durex.

Voltando do intervalo, a dona do estojo se depara com aquela porcaria e calmamente fecha o ziper, vira-se para a colega do lado e pede uma caneta emprestada.

Essa foi uma lição que aprendi. Ignorar o que não merece nossa atenção. Ficamos completamente frustrados, não foi engraçado como da primeira vez e não sentimos vontade de repetir a brincadeira.

No dia seguinte, porém, pensamos como seria bom que algum aluno cdf se dispusesse a nos ensinar física…

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Temos tempo

Temos tempo

Voltar-nos, já não representa a tristeza
É uma espécie de reprise
A lembrança do gosto doce
Daquele doce de mocotó comido na infância
E que tanto apaziguava a gula
Quando o vestir-se era mero detalhe
Era bom manter os pés descalços
Tanto no verão como no inverno
Apesar dos protestos de nossas mães
O comer, a coisa mais importante da vida
Só perdendo para o brincar
Quando gastávamos longas horas em correrias pelo quintal
Fazendo comidinhas com aquelas plantas venenosas
E peripécias circenses nos selins das bicicletas

Alguns anos mais tarde,
Um simples anoitecer
Com a ansiedade que o telefone provocava
A confirmação de um cinema,
De uma volta até a sorveteria do bairro
O pegar na mão,
As primeiras carícias
Quantos beijos melequentos no portão
Quantas mãos bobas passeando por recantos recém-descobertos
E quantas lágrimas derramadas ao travesseiro
Aquele mesmo que nunca ousamos nos desfazer
Por mais puído que esteja e seja

Incertezas,
Elas passaram a ser constantes e inclementes
Roubando-nos o sono tão vital hoje em dia
Como era antigamente, mas com uma diferença
Naqueles meigos anos ainda dormiamos um sono solto e profundo
Sem perceber como aquilo era bom e nos fazia crescer

Uma viagem,
Kilometros de distância
Era com efusão que íamos e voltávamos
Hoje choramos as partidas
Como se o amanhã não fosse chegar nunca
Mas com plena consciência de que os anos passam voando
Fugazes e caprichosos como a nossa esperança hoje em dia
Já que se não der, não deu e dane-se
Da maneira mais prática, mas insensível

Onde foi parar aquele romantismo
Os desejos secretos de sonhos proibidos
Quando a proibição era meramente um dogma familiar
Instituído no calor dos discursos paternalistas
E os sonhos eram os de liberdade acima de tudo e de todos
Nesse momento daríamos nosso primeiro vôo solo,
Seríamos simplesmente anjos se nos brotasse um belo par de asas
E de quantos anjos estaríamos falando
Num céu congestionado como as avenidas das grandes cidades

Hoje sentimos muito ao provocar mágoas
Mas sentimos mais ainda quando por qualquer motivo nos magoamos
Certos de que estamos com a razão
Mesmo que ela se torne efêmera diante de tantas outras coisas mais graves
Sobretudo aquelas coisas para as quais não há remédio
A dor, a ausência, a morte

Pressa é um dos males de nossas vidas
E ela nos faz agir mecanicamente
Sem aproveitar totalmente o ar de cada inspiração
Nem mesmo a companhia de alguém por completo
Já que devemos dar conta de tantas obrigações
Como se o mundo fosse acabar em poucos minutos
E a quebra desse ritmo fosse a grande causadora de paradas cardíacas

Mas pense um pouco,
Reflita sobre suas conquistas
E ponha no outro prato da balança as perdas
Conquistamos poder, coisas inimagináveis
E perdemos a inocência, um item impagável
Amores que se foram,
Momentos de amor que não tivemos
Ou aqueles feitos às pressas, mero objeto de troca
Que não deixaram marcas nem lembranças em nossos corações e mentes

Quanta tragédia! Poderia sufocar-me com todas elas
No entanto acontece um lampejo eventual
E com ele a certeza de que ainda temos tempo suficiente
Para embalar o sono de nossos filhos
Num momento de histeria adolescente
Porque é disso que eles precisam nessas horas
Reviver a lembrança de como era boa a quentura do seio materno
E de como era acolhedor e seguro o abraço de pai

Ainda temos tempo para dizer eu te amo
Sem que isso seja um grande problema
Nem um comprometimento maior do que o simples amor ao próximo,
Ao ser humano,
Sem querer deixar ninguém encabulado ou devedor
Por não ser capaz de retribuir a frase mais dita no mundo depois do advérbio não

Sim, o tempo que nos falta para crescer mais e mais
É aquele mesmo tempo que nos escorre pelos dedos todas as manhãs
Quando nos damos conta de quão atrasados estamos
Sem saber como o perdemos tão facilmente
No cochilar entre o primeiro e o segundo toque do despertador

Tempo. Sabemos que nos resta muito pouco
E tudo o que vivemos já não volta
Perdemos o que deixamos para trás
E também o que deixamos fugir do nosso alcance por ter prioridades que às vezes nos confundem e decepcionam

Escrever essas linhas tomou-me alguns minutos
Mas acho que trouxe certa sabedoria
Por registrar pensamentos que sei me deixarão em poucos instantes
Quando já exausta, deitar minha cabeça ao travesseiro
E deixar-me levar, inconsciente pelos caminhos do sono
Na esperança de sonhar bons sonhos
E ter de volta a inspiração no amanhã
Que consumiu-se juntamente com o hoje.


Anto