quinta-feira, 26 de maio de 2011

Divã - Martha Medeiros

Não sou muito de seguir novelas, seriados, mini-séries. Acho que chegou uma época em que tudo o que tem um próximo capítulo me deixa um tanto impaciente, nervosa até.
Se piscar o olho, der uma cochilada, pronto, perdi o fio da meada e com ele toda a graça do negócio. Chegou o tempo em que é preciso me concentrar muito bem em cada tarefa, ou seja, qualquer interrupção telefônica no meio da dança das panelas pode muito provavelmente significar um feijão queimado e desencadear, por sua vez, a frustração de ter de recorrer àquele miojo salvador, devidamente estocado no fundo da despensa para tais emergências.
Acabei assistindo a uns dois capítulos da série Divã, meio por acaso, meio pela metade. Não porque não quisesse ver, mas no dia e horário semanal ou estava trabalhando, ou havia saído, ou já havia sido nocauteada pelo sono ou simplesmente me esquecia. Também não assisti ao filme, nem fui ao teatro. Enfim, se havia uma sequência lógica para que pudesse acompanhar as aventuras e desventuras de Mercedes, não fiquei sabendo. Uma pena, havia gostado daqueles dois meio-capítulos que vi despretensiosamente.
Foi numa dessas entradas em livraria que me ocorreu perguntar pelo livro. Lá estava ele, um último exemplar esperando por mim. Fininho, leitura de fácil digestão, gostosa como uma melancia geladinha em dias quentes. Sentada numa poltrona confortável lá mesmo no shopping, dei cabo de cinquenta páginas em cerca de meia hora.
Ri muito com algumas situações surreais vividas pela heroína. Mas o que me impactou mesmo foi o início, com a sintonia entre a narrativa dela, Mercedes, interpretada pela excelente Lilia Cabral e o meu pensar. Aquela coisa de me sentir às vezes fora de mim e o peso de certas dúvidas, decisões. Me senti um pouco dentro daquele livro, decifrada pelas palavras da autora que comove, diverte e desperta paixões.
Com os devidos descontos às partes que me tocam, um pouco de Mercedes no Divã:

" Sou eu que começo? Não sei bem o que dizer sobre mim. Não me sinto uma mulher como as outras. Por exemplo, odeio falar sobre crianças, empregadas e liquidações. Tenho vontade de cometer haraquiri quando me convidam para um chá de fraldas e me sinto esquisita à beça usando um lencinho amarrado no pescoço. Mas segui todos os mandamentos de uma boa menina: brinquei de boneca, tive medo do escuro e fiquei nervosa com o primeiro beijo. Quem me vê caminhando na rua, de salto alto e delineador, jura que sou tão feminina quanto as outras: ninguém desconfia do meu hermafroditismo cerebral. Adoro massas cinzentas, detesto cor-de-rosa. Penso como um homem, mas sinto como mulher. Sou autoritária, teimosa e um verdadeiro desastre na cozinha. Peça para eu arrumar uma cama e estrague o meu dia. Vida doméstica é para os gatos.
Nossa, pareço uma metralhadora disparando informações como se estivesse preenchendo um cadastro para arranjar marido. Ponha na conta da ansiedade. A propósito, tenho marido e três filhos.
Sou professora, lecionei por muitos anos em duas escolas, mas depois passei a me dedicar apenas às aulas particulares, ganho melhor e sobra tempo para me dedicar à minha verdadeira vocação, que são as artes plásticas. Gosto muito de pintar, montei um pequeno ateliê dentro do meu apartamento, ali eu me tranco e é onde eu consigo me encontrar. Vivo cercada de pessoas, mas nunca somos nós mesmos na presença de testemunhas.
Às vezes me sinto uma mulher mascarada, como se desempenhasse um papel em sociedade só para se sentir integrada, fazendo parte do mundo. Outras vezes acho que não é nada disso, hospedo em mim uma natureza contestadora e aonde quer que eu vá ela está comigo, só que sou bem-educada e não compro briga à toa. Enfim, parece tudo muito normal, mas há uma voz interna que anda me dizendo: "Você não perde por esperar, Mercedes." É como se eu tivesse, além de uma consciência oficial, também uma consciência paralela, e ela soubesse que não vou segurar minhas ambigüidades por muito tempo.
Tenho um cérebro masculino, como lhe disse, mas isso não interfere na minha sexualidade, que é bem ortodoxa. Já o coração sempre foi gelatinoso, me deixa com as pernas frouxas diante de qualquer um que me convide para um chope. Faz eu dizer tudo ao contrário do que penso: nessas horas não sei aonde vão parar minhas idéias viris. Afino a voz, uso cinta-liga, faço strip-tease. Basta me segurar pela nuca e eu derreto, viro pão com manteiga, sirva-se.
Sou tantas que mal consigo me distinguir. Sou estrategista, batalhadora, porém traída pela comoção. Num piscar de olhos fico terna, delicada. Acho que sou promíscua, doutor Lopes. São muitas mulheres numa só, e alguns homens também. Prepare-se para uma terapia de grupo."

Divã - Martha Medeiros