segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Temos tempo

Temos tempo

Voltar-nos, já não representa a tristeza
É uma espécie de reprise
A lembrança do gosto doce
Daquele doce de mocotó comido na infância
E que tanto apaziguava a gula
Quando o vestir-se era mero detalhe
Era bom manter os pés descalços
Tanto no verão como no inverno
Apesar dos protestos de nossas mães
O comer, a coisa mais importante da vida
Só perdendo para o brincar
Quando gastávamos longas horas em correrias pelo quintal
Fazendo comidinhas com aquelas plantas venenosas
E peripécias circenses nos selins das bicicletas

Alguns anos mais tarde,
Um simples anoitecer
Com a ansiedade que o telefone provocava
A confirmação de um cinema,
De uma volta até a sorveteria do bairro
O pegar na mão,
As primeiras carícias
Quantos beijos melequentos no portão
Quantas mãos bobas passeando por recantos recém-descobertos
E quantas lágrimas derramadas ao travesseiro
Aquele mesmo que nunca ousamos nos desfazer
Por mais puído que esteja e seja

Incertezas,
Elas passaram a ser constantes e inclementes
Roubando-nos o sono tão vital hoje em dia
Como era antigamente, mas com uma diferença
Naqueles meigos anos ainda dormiamos um sono solto e profundo
Sem perceber como aquilo era bom e nos fazia crescer

Uma viagem,
Kilometros de distância
Era com efusão que íamos e voltávamos
Hoje choramos as partidas
Como se o amanhã não fosse chegar nunca
Mas com plena consciência de que os anos passam voando
Fugazes e caprichosos como a nossa esperança hoje em dia
Já que se não der, não deu e dane-se
Da maneira mais prática, mas insensível

Onde foi parar aquele romantismo
Os desejos secretos de sonhos proibidos
Quando a proibição era meramente um dogma familiar
Instituído no calor dos discursos paternalistas
E os sonhos eram os de liberdade acima de tudo e de todos
Nesse momento daríamos nosso primeiro vôo solo,
Seríamos simplesmente anjos se nos brotasse um belo par de asas
E de quantos anjos estaríamos falando
Num céu congestionado como as avenidas das grandes cidades

Hoje sentimos muito ao provocar mágoas
Mas sentimos mais ainda quando por qualquer motivo nos magoamos
Certos de que estamos com a razão
Mesmo que ela se torne efêmera diante de tantas outras coisas mais graves
Sobretudo aquelas coisas para as quais não há remédio
A dor, a ausência, a morte

Pressa é um dos males de nossas vidas
E ela nos faz agir mecanicamente
Sem aproveitar totalmente o ar de cada inspiração
Nem mesmo a companhia de alguém por completo
Já que devemos dar conta de tantas obrigações
Como se o mundo fosse acabar em poucos minutos
E a quebra desse ritmo fosse a grande causadora de paradas cardíacas

Mas pense um pouco,
Reflita sobre suas conquistas
E ponha no outro prato da balança as perdas
Conquistamos poder, coisas inimagináveis
E perdemos a inocência, um item impagável
Amores que se foram,
Momentos de amor que não tivemos
Ou aqueles feitos às pressas, mero objeto de troca
Que não deixaram marcas nem lembranças em nossos corações e mentes

Quanta tragédia! Poderia sufocar-me com todas elas
No entanto acontece um lampejo eventual
E com ele a certeza de que ainda temos tempo suficiente
Para embalar o sono de nossos filhos
Num momento de histeria adolescente
Porque é disso que eles precisam nessas horas
Reviver a lembrança de como era boa a quentura do seio materno
E de como era acolhedor e seguro o abraço de pai

Ainda temos tempo para dizer eu te amo
Sem que isso seja um grande problema
Nem um comprometimento maior do que o simples amor ao próximo,
Ao ser humano,
Sem querer deixar ninguém encabulado ou devedor
Por não ser capaz de retribuir a frase mais dita no mundo depois do advérbio não

Sim, o tempo que nos falta para crescer mais e mais
É aquele mesmo tempo que nos escorre pelos dedos todas as manhãs
Quando nos damos conta de quão atrasados estamos
Sem saber como o perdemos tão facilmente
No cochilar entre o primeiro e o segundo toque do despertador

Tempo. Sabemos que nos resta muito pouco
E tudo o que vivemos já não volta
Perdemos o que deixamos para trás
E também o que deixamos fugir do nosso alcance por ter prioridades que às vezes nos confundem e decepcionam

Escrever essas linhas tomou-me alguns minutos
Mas acho que trouxe certa sabedoria
Por registrar pensamentos que sei me deixarão em poucos instantes
Quando já exausta, deitar minha cabeça ao travesseiro
E deixar-me levar, inconsciente pelos caminhos do sono
Na esperança de sonhar bons sonhos
E ter de volta a inspiração no amanhã
Que consumiu-se juntamente com o hoje.


Anto

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