Aconteceu na Bahia
Mesmo em tempos de ditadura imposta pelo regime militar, com um general à frente da presidência da república, ainda se podia rir neste país. Um tanto quanto às escondidas quando se falava em política, escancaradamente quando o motivo era banal ou se tratava da excentricidade de algum parente ou amigo.
Seu Antonio era soteropolitano da gema. Casado com a tranquila e ponderada dona Amarante, cuja mãe, vó Edith, era minha avó por estima. Avó de tantas outras crianças também, dentre elas Sergio, Mirela e Cíntia, filhos do casal Antonio-Amarante. A do meio, Mirela, é jornalista, mora em São Paulo, minha amiga-irmã.
Mas o caso ocorreu antes mesmo que eu tivesse nascido, ou melhor, acontecia exatamente quando eu estava para chegar ao mundo.
Lá pelos idos de 63/64, meus pais migraram de São Paulo para Salvador e se instalaram no andar térreo do pequeno edifício onde ainda moram vó Edith e a dedicada Zezé, que foi um pouco babá de todos nós. Daí, sobreveio a amizade com esta senhora e, por conseqüência, com sua filha e genro, que a visitavam diariamente. Logo, o casal teve um menino, Sergio e cerca de dois anos depois, em 67, eu já estava sendo gerada.
Um breve parágrafo para descrever, em singelas palavras, a pessoa que merece destaque nesta história. Não que as outras tenham menor importância, mas meu relato tem o intuito de registrar algumas das particularidades de um certo personagem que conseguiu colorir com graça o pacato quotidiano soteropolitano.
Seu Antonio, tinha uma personalidade peculiar. Pessoa agitada, elétrica, complexa, mas de tão excelente índole. Com seu modo um tanto confuso de agir, acabava por conquistar a simpatia de meio-mundo, e no caso não seria um exagero dizer de meia-Salvador. De outro lado, meu pai, um italiano irritadiço e sistemático por natureza, já havia incorporado alguma parcela do jeito baiano de ser. Nem se zangava mais quando o motorista estacionava o ônibus todas as manhãs para uma pelada na orla junto aos demais passageiros, antes de retomar a condução dos que iam para o trabalho. À noite porém, era meu pai quem ia à praia encontrar-se com os camaradas, todos devidamente paramentados com suas varas de pescar, linhas, molitenes, anzóis, iscas e sanduíches. Sob o capricho da lua e das marés, lá ficavam empoleirados nas pedras até altas horas, à espera dos cardumes ou de algum peixe desavisado. Seu Antonio não participava das pescarias, talvez porque não gostasse, quem sabe porque era uma prática um tanto quanto zen demais para ele, ou ainda por um eventual boicote dos amigos pescadores que lá iam meio na surdina, pois não haveriam de querer ver o jantar escapar-lhes, assustado com o típico alvoroço que ele provocava.
Em certa pescaria como tantas outras, num domingo, porém, minha mãe estava sozinha em casa quando começou a sentir as contrações. Naquele tempo não existia telefone celular, mas ainda que tivesse sido inventado, meu pai certamente não portaria um.
Ele havia saído de manhã cedinho e, visto que tardava, minha mãe resolveu recorrer à vizinha vó Edith para pedir a alguém que fosse procurá-lo nos pontos de pesca. Contudo, fortunadamente, encontrou também seu Antonio, dona Amarante e Serginho, que ali estavam em visita.
Vó Edith nem teve chance de argumentar. Se qualquer novidade servia de estopim para uma total efervescência do genro, imagine uma situação destas, um parto! Esquecendo a mulher e o filho como quem esquece um guarda-chuva no balcão da padaria, seu Antonio precipitou-se escadaria abaixo, praticamente carregando dona Yvonne, minha mãe, no colo. Instalou-a no banco do carro e dirigiu feito um cometa para o hospital, enquanto repetia sem parar que mantivesse a calma e controlasse a respiração, tudo o que se recomenda às parturientes, mas com seu peculiar exagero. A angústia de minha mãe certamente se devia ao fato de que o condutor, um tanto afoito em seu modo de guiar, é quem parecia estar prestes a dar à luz. “Que ao menos cheguemos ilesos ao hospital”, ela rezava em pensamento.
Naquele ínterim, meu pai já havia voltado para casa, carregando o samburá cheio de peixes. Vó Edith avisava que o genro havia levado minha mãe ao hospital, momento em que seu Antonio reentra esbaforido, dizendo que o doutor não estava de plantão naquela noite e não havia mais nenhum obstetra para fazer o parto. Agarrou meu pai pelo braço e foram à casa do médico. Ali chegando, a empregada logo avisou: “O dotô tá na missa”. Mais uma vez em disparada, chacoalhando o carro nos paralelepípedos pelas ladeiras do Pelourinho, chegaram à igreja. Um à direita e outro à esquerda, tentando localizar o médico sob os olhares de reprovação de dezenas de fiés. Até que seu Antonio grita e acena: “Achei o doutor, achei”.
Antes mesmo que meu pai conseguisse chegar até eles, seu Antonio já havia se instalado no banco de trás, num espaço aberto à custa de cotoveladas entre as carolas que propositalmente lhe dificultavam a passagem. Puxava o médico pela manga da camisa, insistindo para que os acompanhasse ao hospital imediatamente, justificando que a paciente se encontrava em trabalho de parto.
Ainda que o obstetra afirmasse haver tempo até o parto em si e que só sairia dali depois da bênção do padre, seu Antonio conduzia as negociações com irrascível determinação e não se deixava intimidar. Tanto é que a um certo ponto das investidas, visivelmente enervado, o médico questionou quem era o pai da criança, afinal. “O pai é o meu amigo aqui, seu Armando”, - o qual limitou-se a esboçar um sorriso circunstancialmente amarelo, achando que uma interveniência sua àquela altura, soaria um tanto quanto incabida já que o amigo tomara por completo as rédeas da situação.
Finalmente, após a tão esperada bênção, o médico foi conduzido ao hospital e todos puderam suspirar com alívio e a certeza de missão cumprida.
Mas não pensem que esta foi a última incursão de seu Antonio aos mistérios da reprodução humana. Logo na seqüência, vieram suas filhas Mirela e Cintia. E depois delas, a filha de Raimunda, que havia sido agregada à família como babá das crianças. Ele, sempre agitado e ansioso ao levar uma parturiente à tiracolo pelos corredores do hospital, mas já habituado a ser confundido com o pai e a receber um sem número de votos de felicidades e congratulações pelo bebê da vez.
Mesmo em tempos de ditadura imposta pelo regime militar, com um general à frente da presidência da república, ainda se podia rir neste país. Um tanto quanto às escondidas quando se falava em política, escancaradamente quando o motivo era banal ou se tratava da excentricidade de algum parente ou amigo.
Seu Antonio era soteropolitano da gema. Casado com a tranquila e ponderada dona Amarante, cuja mãe, vó Edith, era minha avó por estima. Avó de tantas outras crianças também, dentre elas Sergio, Mirela e Cíntia, filhos do casal Antonio-Amarante. A do meio, Mirela, é jornalista, mora em São Paulo, minha amiga-irmã.
Mas o caso ocorreu antes mesmo que eu tivesse nascido, ou melhor, acontecia exatamente quando eu estava para chegar ao mundo.
Lá pelos idos de 63/64, meus pais migraram de São Paulo para Salvador e se instalaram no andar térreo do pequeno edifício onde ainda moram vó Edith e a dedicada Zezé, que foi um pouco babá de todos nós. Daí, sobreveio a amizade com esta senhora e, por conseqüência, com sua filha e genro, que a visitavam diariamente. Logo, o casal teve um menino, Sergio e cerca de dois anos depois, em 67, eu já estava sendo gerada.
Um breve parágrafo para descrever, em singelas palavras, a pessoa que merece destaque nesta história. Não que as outras tenham menor importância, mas meu relato tem o intuito de registrar algumas das particularidades de um certo personagem que conseguiu colorir com graça o pacato quotidiano soteropolitano.
Seu Antonio, tinha uma personalidade peculiar. Pessoa agitada, elétrica, complexa, mas de tão excelente índole. Com seu modo um tanto confuso de agir, acabava por conquistar a simpatia de meio-mundo, e no caso não seria um exagero dizer de meia-Salvador. De outro lado, meu pai, um italiano irritadiço e sistemático por natureza, já havia incorporado alguma parcela do jeito baiano de ser. Nem se zangava mais quando o motorista estacionava o ônibus todas as manhãs para uma pelada na orla junto aos demais passageiros, antes de retomar a condução dos que iam para o trabalho. À noite porém, era meu pai quem ia à praia encontrar-se com os camaradas, todos devidamente paramentados com suas varas de pescar, linhas, molitenes, anzóis, iscas e sanduíches. Sob o capricho da lua e das marés, lá ficavam empoleirados nas pedras até altas horas, à espera dos cardumes ou de algum peixe desavisado. Seu Antonio não participava das pescarias, talvez porque não gostasse, quem sabe porque era uma prática um tanto quanto zen demais para ele, ou ainda por um eventual boicote dos amigos pescadores que lá iam meio na surdina, pois não haveriam de querer ver o jantar escapar-lhes, assustado com o típico alvoroço que ele provocava.
Em certa pescaria como tantas outras, num domingo, porém, minha mãe estava sozinha em casa quando começou a sentir as contrações. Naquele tempo não existia telefone celular, mas ainda que tivesse sido inventado, meu pai certamente não portaria um.
Ele havia saído de manhã cedinho e, visto que tardava, minha mãe resolveu recorrer à vizinha vó Edith para pedir a alguém que fosse procurá-lo nos pontos de pesca. Contudo, fortunadamente, encontrou também seu Antonio, dona Amarante e Serginho, que ali estavam em visita.
Vó Edith nem teve chance de argumentar. Se qualquer novidade servia de estopim para uma total efervescência do genro, imagine uma situação destas, um parto! Esquecendo a mulher e o filho como quem esquece um guarda-chuva no balcão da padaria, seu Antonio precipitou-se escadaria abaixo, praticamente carregando dona Yvonne, minha mãe, no colo. Instalou-a no banco do carro e dirigiu feito um cometa para o hospital, enquanto repetia sem parar que mantivesse a calma e controlasse a respiração, tudo o que se recomenda às parturientes, mas com seu peculiar exagero. A angústia de minha mãe certamente se devia ao fato de que o condutor, um tanto afoito em seu modo de guiar, é quem parecia estar prestes a dar à luz. “Que ao menos cheguemos ilesos ao hospital”, ela rezava em pensamento.
Naquele ínterim, meu pai já havia voltado para casa, carregando o samburá cheio de peixes. Vó Edith avisava que o genro havia levado minha mãe ao hospital, momento em que seu Antonio reentra esbaforido, dizendo que o doutor não estava de plantão naquela noite e não havia mais nenhum obstetra para fazer o parto. Agarrou meu pai pelo braço e foram à casa do médico. Ali chegando, a empregada logo avisou: “O dotô tá na missa”. Mais uma vez em disparada, chacoalhando o carro nos paralelepípedos pelas ladeiras do Pelourinho, chegaram à igreja. Um à direita e outro à esquerda, tentando localizar o médico sob os olhares de reprovação de dezenas de fiés. Até que seu Antonio grita e acena: “Achei o doutor, achei”.
Antes mesmo que meu pai conseguisse chegar até eles, seu Antonio já havia se instalado no banco de trás, num espaço aberto à custa de cotoveladas entre as carolas que propositalmente lhe dificultavam a passagem. Puxava o médico pela manga da camisa, insistindo para que os acompanhasse ao hospital imediatamente, justificando que a paciente se encontrava em trabalho de parto.
Ainda que o obstetra afirmasse haver tempo até o parto em si e que só sairia dali depois da bênção do padre, seu Antonio conduzia as negociações com irrascível determinação e não se deixava intimidar. Tanto é que a um certo ponto das investidas, visivelmente enervado, o médico questionou quem era o pai da criança, afinal. “O pai é o meu amigo aqui, seu Armando”, - o qual limitou-se a esboçar um sorriso circunstancialmente amarelo, achando que uma interveniência sua àquela altura, soaria um tanto quanto incabida já que o amigo tomara por completo as rédeas da situação.
Finalmente, após a tão esperada bênção, o médico foi conduzido ao hospital e todos puderam suspirar com alívio e a certeza de missão cumprida.
Mas não pensem que esta foi a última incursão de seu Antonio aos mistérios da reprodução humana. Logo na seqüência, vieram suas filhas Mirela e Cintia. E depois delas, a filha de Raimunda, que havia sido agregada à família como babá das crianças. Ele, sempre agitado e ansioso ao levar uma parturiente à tiracolo pelos corredores do hospital, mas já habituado a ser confundido com o pai e a receber um sem número de votos de felicidades e congratulações pelo bebê da vez.
Nota: Seu Antonio e Vó Edith já são falecidos e deixaram muitas saudades.
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