segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Céu ou inferno - o gosto que não se discute

É verdade que gosto não se discute e me ocorre agora ter certa predileção pelas coisas do passado. Sei lá como se chama a isto, saudosismo, nostalgismo, vintagismo, síndrome da velharia... Sei apenas que de alguma maneira o antigo me traz sensações indescritíveis. Prazer em conhecer pessoas e coisas desconhecidas. Meu gosto, poxa! Alguns certamente criticariam...
Me peguei há pouco abrindo um link de fotos do século XIX, feitas com o daguerreótipo, uma espécie de câmera que utiliza um distinto método de fotografar (especialistas poderiam explicar mais facilmente, mas o google está aí para isto). Enfim, fiquei alguns bons minutos vendo dezenas de imagens de pessoas registradas com o tal método, observando-lhes os ricos detalhes, lendo cada legenda, imaginando como eram e como viviam. 
Algumas imagens do ex-presidente americano Teddy Roosevelt ainda bem jovem, outras de personagens sem nome, soldados e também casais em dias de bodas, crianças, famílias (estes últimos já em outro link, porque me empolguei). Havia algumas datas indicando anos de nascimento e de morte. 
Me impressionou a foto de um rapaz muito bonito, aparentemente saudável, um ferreiro paramentado com avental de couro, segurando um longo martelo e uma ferradura na entrada da oficina, com três ou quatro homens, possivelmente clientes, em segundo plano. A legenda dizia em inglês que o rapaz fulano de tal havia morrido aos vinte e dois anos, de pneumonia. 
Outra foto interessante: um mestiço índio americano, com cabelos longos escorridos, casaco de franjas à la Daniel Boone, sentado e segurando uma espécie de arma de cano longo. Sua mão direita pousada na perna, onde se via claramente a falta do dedo mínimo, nem um cotoco dele, apenas a cicatriz da sua ausência. 
Quantas daquelas pessoas chegaram a envelhecer ou mesmo atingiram a idade madura? Alguns jovens soldados, cujas fisionomias denunciavam ainda estarem em plena puberdade, fotografados com suas fardas antes da primeira e única batalha, eternizados por uma imagem arquivada em algum museu. Antes dos museus, estas fotos provavelmente pertenceram aos espólios de famílias, esquecidos nos porões de suas residências. 
A morte chegava fácil, a expectativa de vida girava em torno dos quarenta ou cinquenta anos, bem por volta da idade que tenho hoje. 
E me pergunto por que o interesse em olhar  seus rostos, estudar suas expressões, ver como estavam vestidos? Fora um ou outro "conhecido", como o mencionado ex-presidente Roosevelt, os escritores Ernest Hemingway e AntonTchecov e o lendário caçador Buffalo Bill, todos os demais eram ilustres desconhecidos, alguns com nome e sobrenome, outros totalmente anônimos, apenas um retrato no tempo.
 Curiosidade mórbida?
Acho que a questão seria explicada pelo fato de minha família desde sempre colecionar relíquias, gostar de arte e museus. Crescer nestes ambientes faz você amar ou abominar o que é antigo e conviver resignadamente ou revoltar-se contra as crises de rinite alérgica, quase sempre presentes em ambientes permeados pela antiguidade.
É fato que nos últimos trinta anos as câmeras fotográficas se popularizaram e hoje é praticamente improvável encontrar alguém que não tenha acesso a este tipo de registrador de imagens, ao menos nos grandes centros. 
Ao mesmo tempo que a fotografia se democratizou, acabou perdendo muito de seu charme, de seu valor sentimental.
Quando eu era criança, os retratos da família eram feitos em momentos especiais, quase solenes. Era a "hora da foto" e todos precisavam estar penteados, bem vestidos ou ao menos limpinhos. A espera pela revelação alimentava toda uma ansiedade e quando finalmente víamos as fotos, era o auge. As que ficavam boas mereciam cópias e eram distribuídas àqueles mais caros e o bem querer era naturalmente recíproco. As que ficavam muito boas alcançavam o status da ampliação, ganhavam belas molduras e um lugar de destaque na casa.
Hoje fotografar e se auto-fotografar é quase uma banalidade, praticamente não há custo. As fotos não param em um lugar fixo, não enfeitam mais nada, são virtuais e o descarte pode ser feito de maneira rápida e indolor, com um clique no ícone da lixeira.
Elas circulam por aí, sabe-se lá onde e vistas por quem. Às vezes usadas, abusadas, copiadas e distorcidas, nossas fotos podem se dispersar pelo submundo, sob olhares de pessoas que jamais fariam parte do nosso círculo de amizades.
A sensação de pertencimento apenas aos que julgamos especiais é cada vez mais rara. Antigamente, ainda no tempo de nossos avós, as fotos mereciam dedicatórias. Eram entregues com afeto ou amor, "de mim para você" e ninguém mais. Não havia terceira pessoa ou o mundo todo para compartilhar nosso semblante, muitas vezes furtado e divulgado sem o mínimo pudor.
Voltando ao daguerreótipo, o interessante é que dificilmente tomaríamos conhecimento daquelas fotos do século XIX se não tivessem sido digitalizadas e colocadas em circulação. Justamente aquilo que desencanta, que torna as imagens descartáveis, pode levá-las a viajar pelo mundo e serem vistas, admiradas, conhecidas, estudadas. 
É o ônus cobrado pela tecnologia. É a aceitação tácita de que, ao inserir uma imagem na rede estaremos perdendo completamente o controle sobre ela e seu destino. 
É uma parcela de nós que se esvai.
É o céu e o inferno ao alcance do botão enviar.

Anto out/2011

http://mydaguerreotypeboyfriend.tumblr.com/

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